Por Mário Lucas Carbonera
O homem é, decididamente, um animal que fala, como observara Cícero. E, devemos acrescentar, um animal que escreve. Fala e escreve, ademais, em profusão, em abundância. Não há memória que seja capaz de conter tal rio caudaloso de signos articulados. Quem poderia guardar na memória todas as palavras de um dicionário, livro que trata só de vocábulos isolados? Quem, mais ainda, poderia coligir no seu repositório interior todas as combinações possíveis de palavras? Ora, a resposta é muito simples: todo e qualquer homem pode fazê-lo – e, talvez para espanto de muitos, todos já o fazem com certa naturalidade gritante. Não fosse assim, como seríamos capazes de ler qualquer coisa?
Ocorre que, como é facilmente perceptível, a nós nos é possível ter mais palavras do que coisas na cabeça. A nós nos é possível ter memória da palavra “ornitorrinco” sem ter tido qualquer experiência direta de um dos membros dessa espécie; é-nos até mesmo possível ter registro mental de uma coleção de fatos sobre tal animal sem nunca o termos visto na frente. Disso, podemos concluir que muitas vezes, em nossa mente, as palavras implicam apenas promessas de conhecimento, e não conhecimentos reais e precisos. Se nossa imaginação é boa e funcional, podemos até chegar muito próximos de um conhecimento específico sem ter tido contato algum com o objeto do conhecimento. Por outro lado, pode-se argumentar que o conhecimento só se completa realmente quando temos percepção sensorial do objeto, desde que isso seja possível, isto é, desde que não trate de seres incorpóreos o assunto sobre que pensamos.
Parece claro que nossa capacidade de absorver palavras é muito maior do que nossa capacidade de termos percepções sensoriais dos fatos a que elas remetem, mesmo porque os fatos estão se multiplicando a cada nanossegundo para muito além do que nosso aparato sensitivo é capaz de captar, sendo por isso assunto muito mais do governo de Deus do que do nosso. As palavras, no entanto, como uma espécie de captura fotográfica, prendem uma coleção ambulante e alucinante de fatos a um som – como que os fisga e deposita na cesta da memória. Muitas vezes, o peixe conceitual que pegamos é mera ficção, história de pescador; mas também com frequência são boas as histórias dos pescadores. São promessas de peixes que serão fisgados no futuro.
Tomemos um exemplo simples – um prego. Podemos saber muito sobre ele de modo geral. Sabemos, ao menos, para que ele serve. Mas nunca saberemos nem um milésimo do que se passou, individualmente, com um prego real qualquer. A história de vida de qualquer prego que afixa as partes de minha mesa me é um segredo insondável, assunto de que, literalmente, só Deus sabe. Em relação a todos os eventos históricos que lhe sucederam até chegar a pregar as partes da mesa, a todos fenômenos químicos por que passou, passa e há de passar, e mais os atômicos e subatômicos – em relação a tudo isso, estarei para sempre no escuro. E, no entanto, o prego me é compreensível, no sentido de que sua função não me é opaca, não me é absurda, mas perfeitamente razoável.
Em outras palavras, somos animais que lidam com palavras mais do que com coisas – muito embora não devamos deixar as coisas de lado para nos encastelarmos num cerebralismo hermético e alienante. O segredo aqui parece ser saber medir, dosar; pois além de ser um animal que fala, o homem é um animal que mensura e organiza. Medir o que sabemos apenas por meio de palavras, como pontes um tanto perigosas que se estendem, temerariamente, sobre os abismos da ignorância, e aquilo que sabemos de fato, preto no branco, como testemunhas e observadores fieis – eis o segredo da coisa, seu ponto de partida seguro. Não que aquilo que sabemos somente por meio das muletas verbais seja desprezível. É apenas menos seguro, mais incerto; requer verificação e cuidado; e a nós nos é valioso estarmos bem cientes disso.
Após mensurar as coisas que sabemos, organizemo-las na nossa memória, para não nos perdermos e não nos confundirmos como quem procura, no quartinho da bagunça, um livro que pode estar em uma de 5 caixas abarrotadas; só o encontramos depois termos perdido a vontade de o ler. Convém adotarmos algum sistema para isso, mas não será este o assunto deste texto.
Voltemos pois ao tópico. Com o que foi dito, é possível avançar à proposição que queremos mais intimamente discutir, a qual soaria escandalosa demais não fosse antecedida pelas considerações feitas, que é: nada aprendemos com a mera leitura ou com a mera audição de discursos, porque as palavras são apenas véus – véus que precisam ser penetrados. Esse é um problema com que os antigos – sempre eles – já se haviam deparado. Se alguma coisa não se encontra já em nossa mente, como é possível que passe para lá por meio de palavras, que são, materialmente falando, meros sons, mero ar percutido? Não restará dúvida, a quem considerar sob este aspecto a questão, de que se trata de um processo sutilíssimo e demasiado frágil, afinal trata-se, em essência, de verdades carregadas pelo ar, processo figurado na mitologia pelo deus Mercúrio, que é capaz de voejar pelos ares com suas sandálias aladas, levando as mensagens dos deuses aos mortais e vice-versa. Mas, como pode-se imaginar, quem voa pelos pés encontrará algumas dificuldades em fazê-lo.
Mas será algo realmente possível ou tudo não passará de uma ilusão criada pelo cérebro humano, que, para certa teoria científica, seria um órgão intrinsecamente subjetivista, cujas finalidades não passariam além da satisfação das necessidades e dos desejos corporais, de nós ocultadas pela fantasia projetada da intelectualidade. Que se guarde o regurgitador de tal frenesi de refletir a respeito de como pôde chegar a essa verdade objetiva se seu próprio cérebro é um órgão essencialmente solipsista, pois constatará que não devia ser capaz, pura e simplesmente. Por outro lado, notamos que até os cães, animais que categorizamos como irracionais, são capazes de captar sons no ar e transmutá-los em informações mentais, de tal modo que ao ouvir as palavras “comida” ou “passear”, já se ouriçam todos, antecipando com acerto o que vai acontecer. Não são capazes, no entanto, de lidar com termos mais abstratos, nem com juízos e raciocínios. De nada adianta conversarmos com eles sobre a concupiscência, referindo seu gosto pela carne de preferência à ração, à preferência pelo que é mais saboroso ao que é mais nutritivo e saudável; pois não capazes de alcançar termos abstratos para além do que é imediato aos sentidos e daquilo que satisfaz ou se opõe a seus instintos animais.
Resta, porém, que o cérebro canino é capaz de isolar certos sons que escuta e de tomá-los como significantes de certas realidades que lhe aprazem ou lhe dão medo. Então, nos devíamos perguntar, e especialmente o devia fazer o cientista morbidamente cético: se os cães podem, por que não nós?
Mas, responderá ele, os cães só captam aquilo que diz respeito à sua economia intestina, por assim dizer, coisa que também acontece com os homens. E o problema em pensar isso é que se trata de um reducionismo atroz, ou, em outros termos, de uma incapacidade primária de conduzir um raciocínio a suas conclusões mais sutis. Pois, de novo, se o homem é capaz de olhar para si com suficiente objetividade que tire conclusões sobre seu aparato pensante, ele é capaz de objetividade. Ponto. Do contrário, viveria iludidamente imerso nos seus pensamentos sem ser capaz de se alçar acima deles para olhá-los como coisas separadas de si mesmo. Dessa conclusão, como uma rede posta para pegá-lo no ato de se contradizer, o cético extremista não conseguirá fugir – salvo com aquele expediente típico dos desonestos, o suicídio do intelecto.
Entretanto, deixemos de canto agora o cético máximo, e voltemos ao problema principal, que é o fato de que se o ceticismo não tem razão, tem razões. Pois, como vimos, a transição entre o mundo real e o das palavras é periculosa, incerta, até fantasmagórica. E o problema é justamente o mundo dos fantasmas que medeia entre a realidade e o intelecto. Trata-se da imaginação, faculdade desde sempre mui vilipendiada, quando não desprezada. E quem tem o hábito de se recolher a esse lugar da alma para por lá caminhar, terá percebido que o melhor adjetivo para esse sítio interior é fantasmagórico, pois as sombras que lá habitam, ainda que em alguma medida estejam sob nossa influência, também têm vida própria, e contornos mal definidos. E tudo que sabemos depende das sombras.
Se esse lugar foi por nós deixado às traças, ou ao fluxo incessante e desgovernado de imagens suscitadas pelo que nos vem pelos sentidos, não só não estudaremos como se deve, com método e disciplina, mas nossa vida será por necessidade uma bagunça dos diabos. Em outras palavras, quem nunca visita essa paragem mental, se deixa guiar pelos fantasmas que lá assombram, e serão fantasmas mesquinhos e de alma pobre e sofrida; pois tal homem nem faz aquele mínimo hoje proposto pela turma da formação do imaginário: nutrir as sombras com algum alimento mais rico e benéfico. Este homem, nos momentos fugidios em que se recolhe em si, vê apenas as sombras que passam pelos olhos da mente numa velocidade alucinante, cujas figuras quiméricas e monstruosas o obrigam a fazer o que elas lhe ditam e inspiram. Não admira que fuja desse espelho interior como o diabo da cruz. Ilusória fuga, porém, pois os fantasmas ainda assim o manipulam como a um bonequinho de ventríloquo.
Para finalmente sermos capazes de dar ordens às sombras ao invés de sermos por elas mandados ao abismo, devemos, sim, começar por lhes dar bom alimento, que as torne pessoas melhores, melhores amigos imaginários. Uma sombra bem nutrida é uma sombra feliz. Por isso há vantagem nas atividades desenvolvidas pela turma da formação do imaginário. A mera leitura atenta e bem imaginada dos clássicos já nos melhora muito a situação. Povoamos nossa memória de fantasmas e situações interessantes que nos dão o que pensar e matutar. Mas não basta. Não basta ler e pensar um pouco sobre o que foi lido, embora isso seja já um método que leva mais longe que a média.
É preciso conhecer o mundo imaginal, o que significa pôr ordem a ele, transformá-lo num lugar asseado, desbastado, reconhecível. Santo Tomás de Aquino, ao contrário do que pensam alguns, tinha em alta conta a memória e a fábrica de imagens que lá há, chamada imaginação; não por outra razão a chamava de tesouro. Se por um lado ele sabia que os erros de julgamento se dão por causa dos fantasmas (é bom esclarecer a esta altura que esse é um termo técnico para as imagens criadas na imaginação), sabia que os juízos acertados também têm origem nos fantasmas, pois o intelecto do homem abstraí das imagens, não diretamente dos dados dos sentidos. Dito de um modo mais simples, quanto mais rica e mais perfeita a imagem que temos de algo ou de alguma situação, melhor faremos julgamento dela; e vice-versa.
E, agora, feita essa incursão no mundo imaginal, podemos voltar e tratar das palavras, arrematando a nossa exposição como queríamos. Fica claro aqui que as palavras são vestes que pomos aos fantasmas, para os diferenciarmos naquele mundo penumbroso e trazermo-los à luz do intelecto, onde podemos fazer juízos a respeito deles. Todavia, se nosso domínio, tanto do mundo dos fantasmas, como da técnica de tecer frases e orações, for precário, capenga, não haverá rei nem lei que nos permita avançar com segurança nos estudos. Eis a razão de os estudos terem de por força começar pela literatura de imaginação e pela gramática, conjuntamente, pois o treinamento nessas duas técnicas nos levará ao domínio antes mencionado. É dizer que não se pode, sob nenhuma alegação, desviar desses campos pulando para outros mais avançados; cultivando-os, até podemos escolher se vamos prosseguir para a dialética ou para a retórica: sem o fazer, nos perderemos do caminho correto mais cedo ou mais tarde. Quando dermos por conta, é possível que seja tarde demais.
Uma das ilusões de que nos livramos, se fizermos esses estudos com correção, é a ilusão das palavras. Por um lado, a ilusão de que saber palavras é necessariamente saber algo; por outro, a ilusão ainda mais infantil de que as palavras significam algo por si mesmas. Pode soar simplório, mas quando novos acreditamos que as palavras têm certa relação intrínseca com as coisas que significam; que elas são, por assim dizer, os nomes reais das coisas. Mas não são; elas são nomes dados por convenção, isto é, por acordo entre os homens. São acordos antiguíssimos e veneráveis, feitos não se sabe quando nem com qual ânimo, mas acordos. Podemos até conjeturar a existência de uma língua primordial, adâmica, que seria, de certo modo misterioso, a língua natural, que possuía os nomes corretos das coisas. Contudo, temos de concluir que, se existiu, ela acabou perdida na confusão das línguas, figurada no episódio bíblico da Torre de Babel. Hoje, em relação aos nomes originais, só nos resta especular, com todos os perigos e ruas sem saída que essa atividade implica.
Agora, se as palavras que usamos foram estabelecidas por convenções, isso significa que não são naturais, e que sua escolha traz algo de arbitrário, o que, neste caso, quer dizer algo de parcial em sua etimologia. Mais ainda, elas não estão relacionadas com as coisas mesmas, mas com os fantasmas, o que importa dizer que se os fantasmas, se as imagens mentais são pobres, aquilo que dizemos é pobre. Daí o adágio: duo cum idem dicunt non est idem: quando duas pessoas dizem a mesma coisa, não é a mesma coisa. Assim sendo, um malandro falastrão pode falar tão bem ou melhor que um sábio sobre certo assunto, mas suas palavras são leves e inconsequentes; as do sábio, graves e importantes. Eles podem, inclusive, dizer a mesmíssima frase; mas não dirão a mesma coisa, pois aquilo que está na alma do sábio é muito diverso, mais rico, mais firme, mais enérgico e pujante do que o que está na alma do homem meramente bem falante. Este é o típico professor de vento, aquele nos dá um fruto amadurecido e saboroso de que se nutre a inteligência e a alma. E isso se reflete no tom de voz, na postura, na condução dos argumentos e em mil outros detalhes, de modo que nunca é realmente possível imitar o sábio, apenas seguir os seus passos rezando a Deus para que nos torne como ele.
Mas ninguém negará que um sábio que domina a arte de falar conseguirá comunicar ainda melhor os tesouros do seu interior, pois saberá acomodar o conteúdo à melhor veste disponível na língua em que se está expressando, produzindo aquele optimum que os antigos denominavam decorum, a palavra apropriada. E aqui o ótimo não é o inimigo do bom, mas o próprio bom, pois a expressão perfeita, a palavra verdadeira pertence a Deus e a Deus somente. Assim, o decorum é ao que de melhor podemos aspirar, nós humanos, em termos de expressividade.
Desse modo, aquele que almeja dominar as palavras, deverá por força separá-las mentalmente das ideias que elas expressam, deverá perceber o abismo que há entre essas coisas – abismo povoado pelas sombras mencionadas – e deverá tratar de ter uma memória e uma imaginação bem rica e ordenada. A operação de separação pode ser dolorosa, pois gostamos de pensar que só por expressar certas palavras, temos automaticamente razão. Quem assim age ainda está na infância do pensamento. Depois de operar a separação, porém, deverá saber operar a união entre pensamento e palavra da forma apropriada, como alguém treinado nas três artes do Trivium, levando em conta a impressão na plateia e os níveis de discurso. Mas isso é assunto para outro texto.