Os antigos tinham modos curiosos de explicar as coisas abstratas. Nós, estudiosos modernos, tendemos a nos enfiar cada vez mais para dentro em conceitos abstratos e abstrusos, difíceis de exprimir para o povão, que não tem tempo de estudar a fundo as ciências; os antigos, porém, sempre que queriam se fazer entender, matavam a charada lançando mão de imagens ricas e apropriadas.
É por isso que nas Artes Liberais se aprende tanto a dialética como a retórica. Pois se a dialética vai sempre mais para dentro dos problemas e das questões, a retórica, por sua vez, busca sempre se expandir mais para fora, o que implica dizer que ela busca sempre arrebatar uma plateia maior para o seu redil.
Não há contradição entre as duas abordagens, antes, quando as duas se encontram numa mesma alma, há na verdade a perfeição da arte de argumentar, que significa ser capaz de ir tanto para dentro como para fora das questões.
E aí temos o símbolo de Zenão a respeito dessas duas artes: a mão aberta e a mão fechada, representando, respectivamente, a retórica e a dialética.
Mas, voltando ao primeiro assunto, vamos dizer que alguém queira explicar a um público leigo a difícil relação entre a alma e o corpo. Alguém de mentalidade puramente dialética poderia entrar a falar de princípios, potências e atos, e deixaria o público boiando. Estaria errado em fazê-lo? Sim e não. Não erraria por poder estar emitindo um discurso verdadeiro; mas, sim, erraria, por estar discursando para um público ainda incapaz de alcançá-lo.
Mas, então, devemos concluir que a verdade está vedada aos mais simples ou aos iniciantes?
Veremos que não. Por exemplo, Santo Agostinho, no tratado Sobre a Música, em meio a uma explicação para lá de complicada, e querendo elucidar rapidamente a relação entre alma e corpo, lança mão de uma imagem simples: a relação entre senhor e escravo. A alma está para o corpo como o senhor para seu escravo.
Percebeu o leitor? Numa rápida pincelada a obscura relação se clarificou. E assim, num tratado de teor dialético, o santo, que era tão ou mais versado em retórica, resolve e resume um problema que poderia estender e complicar ainda mais as coisas.
A analogia é mais rica do que parece logo de cara. Pois, assim como um escravo pode se rebelar contra seu senhor, o corpo pode se rebelar contra a alma e já não obedecer-lhe, humilhando-a no processo. E isso sempre ocorre quando a alma se mostra leniente demais, ou dura demais, com o corpo que lhe é sujeito. Por isso, mesmo na doutrina cristã, que grande ênfase põe nas privações e sofrimentos da penitência pelos pecados, não se aconselha o sofrimento em doses cavalares e injustificados.
O senhor deve sê-lo com bom-senso e justiça.
Politicamente incorreto? Bem, de fato a sensibilidade hodierna pode torcer o nariz para o uso de tal imagem numa relação de proporção com algo tão nobre quanto a relação alma/corpo. Mas isso diz mais sobre nossa sensibilidade doentia e mórbida – que foi treinada para assim ser – do que sobre os antigos ou Santo Agostinho. É preciso senso de proporção.
O santo não pregava a favor da escravidão em nenhuma capacidade. Mas ela era, e ainda é, em alguns lugares, uma realidade humana. Sendo-o, pode e deve ser olhada e analisada; criar um tabu ao seu redor não é solução. Olhar para o lado, fingindo que não existe, seja com nojo, seja com medo, é garantir que maus possam praticá-la sem que ninguém os vigie.
Quanto à própria analogia. Devemos sempre supor que uma mente quase milagrosa quanto a do santo de Hipona deve ter tido boas razões para a escolha de imagem que ele sabia forte.
E, de fato, por tê-la usado, já temos a primeira nota que ele quer nos indicar: que devemos trazer nosso corpo em sujeição. E não há nada errado nisso. Há muito de errado em sujeitar aos outros contra sua vontade; mas em domarmos nossas más inclinações, contra a vontade delas, nada de errado há. Assim, a imagem, que exteriormente é feia, interiormente se torna apta, pois esta é mágica que os bons escritores fazem.
E o santo nada estava dizendo de novo: apenas dava nova expressão ao famoso dito de outro pensador imenso, Aristóteles, que afirma, em seu tratado sobre política, que a alma tem poder despótico sobre o corpo. O que, de novo, não é dizer nenhuma inverdade ou exagero, mas usar uma imagem das mais ilustrativas. Pois, se o corpo e a alma vivessem em rixa, isto é, se eu decidir ir para o campo, com ele teimando em ir para a praia, o resultado seria trágico, um divórcio doloroso.
Bem, pode-se assim ver na prática como só o domínio das artes retóricas e dialéticas nos dá o poder consumado de argumentar. A sabedoria das Artes Liberais uniu essas duas disciplinas que, no começo, disputavam entre si; trouxe-as a um casamento perfeito, que desde sempre estavam destinadas a ter, em nossas mentes. Junto com a Gramática, ascendente das duas, formam a tríade perfeita dos estudos linguísticos, que a todos de bom senso devem aceder.