Suponhamos que um inimigo da cultura afirmasse que prefere determinado cantor de funk a qualquer poeta reputado clássico; é fora de dúvida que tal opinião teria tanta relevância quanto a poeira que se ergue, por alguns instantes, pela ação do vento que passa. Ninguém lhe prestaria a menor atenção ou, se alguém prestasse, seria pessoa cuja capacidade de concentração e memória seriam irrelevantes ao processo cósmico. E, no entanto, não precisamos supor: tais inimigos da cultura são a triste resultante de um desenvolvimento social que tomou uma vereda errada lá atrás, cujas repercussões ruins nem o mais pessimista dos moralistas poderia antever.
Por que levantamos esse assunto? Bem, por razões outras que a discussão de frutos apodrecidos; é porque existe um personagem de nossa sociedade que, muito embora não seja parvo ao ponto de ter em alta estima um cantor de funk enquanto tal, acaba, não obstante, preterindo a leitura das grandes obras da literatura pela mesma razão: por não gostar, isto é, por não sentir um sabor agradável na sua leitura.
“Não é pra mim!”, exclama esse tipo humano tão atual, e o diz até com alguma melancolia na voz. “Prefiro continuar no meu cantinho, vendo as minhas séries e assistindo aos meus filmes. E, veja só, vez em quando eu até escolho coisa boa para ver, como O Senhor dos Anéis, As Crônicas de Nárnia, os filmes do Sherlock Holmes com o Robert Downey Jr. etc.”
Acontece que uma coisa mui simples refuta e põe abaixo todo o aparato racionalizante desse simpático camarada: não há não gostar da literatura clássica. Em outras palavras, bem precisas e claras, ninguém tem o direito de dizer que não gosta de Camões, Homero e Ovídio. Simplesmente essa não é uma opção viável, no sentido de que não faz sentido. Os autores clássicos são bons, sua leitura é agradável. Ponto. E, assim, o único motivo por que alguém diga que não gosta, ou que não consegue apreciar uma obra clássica, só pode ser o simples fato de que ele não a entende.
Não, não estamos reduzindo um fenômeno complexo a uma solução barata e fácil. E não entender não é pecado grave nem venial (ou talvez a questão esteja em aberto quanto ao status de venial, mas isso cabe a um concílio resolver). Em todo caso, em geral não se trata de um defeito doloso, apenas culposo. Ou seja, ninguém tem a intenção de ser incapaz de absorver o sumo das grandes obras literárias; porém, as circunstâncias fazem com que o brasileiro não receba, no tempo mais adequado, a formação que lhe facultaria isso. Assim, ele, na idade adulta, acossado pelas mais diversas exigências – às vezes justas, com frequência não – sente-se incapaz de arcar com mais o peso de aprender a ler coisas complexas. Então, ele meramente desiste de arcar com esse peso. E quem o poderia culpar?
Bom, se esse sujeito, para além de renunciar às leituras que lhe edificariam a vida, passar também a dizer não são boas, que não gosta delas – neste caso ele torna-se culpável, e de contrafação dolosa. Porque não se pode dar este salto. Que ele se contente com a humildade de saber que não sabe aproveitar o que é altamente desejável, mas que não atribua à boa especiaria aquilo que vem da maldade do seu paladar.
Isso é o mínimo que se pede.
E, apesar disso, nem tudo são más notícias. A boa nova é que não é tão difícil assim ir aprendendo a ler as obras que mais se devem ler. Melhor ainda, se aprende a lê-las, lendo-as. Dito de outro modo, basta um poucochinho de boa vontade aplicada, para que se nos metamos no caminho virtuoso. Basta aquele ímpeto inicial de arrancada, até pegarmos no tranco, para que depois vamos desenvolvendo o gosto pela coisa. E, nesta seara, quanto mais se entende, mais se ama e se saboreia. E como uma árvore que sempre renova seus frutos, e sempre os renovasse ainda mais perfeitos e deleitosos, as obras clássicas com o tempo vão ganhando um sabor ainda melhor em nosso intelecto. Destarte, a leitura da Divina Comédia, por exemplo, nunca é exaurida, mas sempre entrega mais a cada nova vez que a visitamos e lhe pedimos o que tem a nos oferecer.
Bem, foi dito que aprendemos a ler lendo. Parece razoável. Mas será suficiente? É claro que não. Forçar-nos a ler aquilo que entendemos apenas por alto é, sim, o principal; ter vontade de saber é conditio sine qua non para saber. E ter vontade é justamente ir de encontro, afrontar o desejo preguiçoso de não saber, de permanecer no confortável, no Netflix. É também permanecer nessa vontade quando, após as vitórias iniciais, o demoniozinho do Netflix faz uma investida mais forte e, comumente, inesperada, com que quase caímos, quase voltamos à velha rotina do comodismo. Tudo isso, insistimos, é principal e necessário, mas é preciso um passo a mais. É preciso aprender os passos técnicos que estão em jogo nas grandes obras. E é aí – quando ouve falar a palavra “técnico” – que justamente o brasileiro, que cambaleando já se arrastava a si mesmo, lançando mão de todas as suas forças morais para não desistir, cai. E é sempre uma queda retumbante, avassaladora, da qual ele no mais das vezes não se levanta.
Essa infeliz consequência é fruto de uma estimativa muito ruim das penas de se adquirir cultura. Aliás, são penas mesmo? Na mentalidade brasileira, parece muito que sim. Parece até ser mais, ser um suplício, uma tortura auto-infligida. Talvez porque o brasileiro associe a palavra “técnica” a coisas como solda, carpintaria, mecatrônica; em suma, a coisas manuais que se faz para ganhar a vida, oito horas por dia, 5 dias na semana. Talvez porque a experiência escolar do sujeito tenha sido torturante mesmo. Mas com certeza – e essa é uma causa sociológica grave – porque a vida no Brasil é caótica, violenta, feia e crua ao extremo; de modo que aqui vivemos numa perpétua sensação apocalíptica, como se o fim estivesse próximo, na próxima esquina. Num ambiente psicológico tal, as pessoas, no geral, buscarão refúgio nas coisas mais imediatas; as mais materialistas, buscando meramente sobreviver com algum conforto; as mais espirituais, nos aspectos mais externos da religião, como a doutrina e a pregação escatológica.
Nesse furdúncio todo, quem é sacrificado é sempre aquele âmbito humano que se situa entre a busca pela sobrevivência e a busca pelas coisas do alto: a educação, a literatura, a ciência e a filosofia genuínas. Em meio ao caos, essas coisas não têm a aparência do essencial. Elas se mostram como coisas dispensáveis, como luxos refinados.
Mas, como dissemos, isso é uma estimativa muito ruim das coisas. Em primeiro lugar porque não sabemos nem podemos saber se estamos numa prévia do fim dos tempos. Isso é apenas uma sensação que temos – sensação não desprovida de analogia; mas é apenas uma analogia. Por isso, precisamos seguir agindo como se o mundo não estivesse prestes a se desfazer. Assim Cristo nos ensinou. Temos de fazer o que se nos é pedido sem especular se o fim nos aguarda na próxima esquina do tempo. Assim, façamos o que devemos fazer. Ponto. E ponto pacífico.
E o que devemos fazer, seja lá o que for especificamente, está com certeza atrelado com a circunstância em que nos achamos. E a situação brasileira é de desastre cultural e educacional, como poucos ignoram. Nesta situação, pergunta-se: podemos, em consciência, descurarmos do cultivo das letras e do saber apelando à mesma situação desastrosa, assim perpetuando-a? Podemos nos enclausurar numa cultura netflixiana, fazendo ouvidos moucos à voz do dever que vem de fora? Ou podemos reduzir tudo às diquinhas sobre como ganhar dinheiro e ser feliz que lemos no Instagram? Podemos adiar a leitura das obras clássicas e a inculcação sincera desse hábito a nossos filhos para as calendas gregas?
Quer-nos parecer que não.
Ademais, se pudermos nos demorar um pouco mais nas causas da debacle cultural, não podemos deixar de citar o culto da ignorância – que por sua feiura nos repugna mencionar – que vige no Brasil. Sim, esse culto existe e está ativo, está bem vivo. Não, ele não é mero elogio da simplicidade popular. Ele é ativo apreço pelo não saber, o qual engendra uma passividade preguiçosa em relação a qualquer conhecimento profundo, qualquer domínio forte de um tema. Quem muito sabe é visto com maus olhos, por pedante, como naquela famosa cena do Policarpo Quaresma, em que as velhinhas censuram o personagem homônimo por ter biblioteca em casa sem ser bacharel. É contra esse ódio arraigado que lutamos; hábito que só se tornou tão prevalente, cínico e malicioso por ter longa data e se tornado respeitável tradição.
Mas voltemos para a luz. Nesse cenário catastrófico que pintamos, vê-se uma luz no fim do túnel. Uma luz distante, minguante, mortiça. Mas luz. Uma luz que seria bem maior se apenas acreditássemos nela. Se apenas acreditássemos que adquirir capacidade para ler boas obras não é algo assim tão difícil. Pois não é mesmo. Retomemos de onde paramos. Dizíamos que o essencial é querer. Mas falamos também da necessidade de se ter algum conhecimento técnico, onde as dores começaram. Mas é algum mesmo, não é conhecimento extensivo, exaustivo, pormenorizado. Trata-se de adquirir certas capacidades genéricas de discernimento textual que, uma vez dominadas, permanecem conosco. O leitor quer mais uma boa notícia? Habilidades essas que vão-se adquirindo na própria leitura frequente. A frequência gera a habituação. Uma vez habituados ao estilo, giros frasais, figuras de linguagem, estratégias de narração e argumentação, nós precisamos de tão-só um pequeno aporte teórico para que tenhamos o domínio médio adequado do sistema. E é tão-só isso que é o necessário para que a pessoa comece a degustar as grandes obras. Tornar-se um mestre das artes do Trivium, um escritor competente, e coisas desse tipo, são outros quinhentos. Mas a média das pessoas não precisa de nada disso. A média das pessoas, porém, precisa ao menos começar a navegar em águas culturais mais profundas, sentindo gosto pela aventura. Duc in altum!
E se isso não ocorrer? Então, bem. Se isso não ocorrer, tudo continuará como está. Continuaremos a ser uma nação em que uma enorme parcela de pessoas se resume a procurar as coisas mais baixas, desde a mera sobrevivência física até coisas piores, até prazeres diabólicos. E uma parcela pequena e indefesa continuará aferrada aos dogmas, às doutrinas e às discussões acaloradas em torno de questões como a liturgia e o clero mundanizado. Questões graves, sem dúvida, mas que não têm solução se não em um quadro em que a cultura média seja mais, muito mais refinada do que é. Pois é a cultura e, em especial, a alta cultura que puxa para cima, que prepara um povo adequadamente para os píncaros da filosofia e, mais ainda, para os da teologia e da mística. Mas, se essa recuperação da alta cultura não for possível, se ninguém se animar a tocar o projeto, pedimos que, ao menos, tenham a decência de não dizer que não gostam de Camões, Petrarca, Dante ou Ésquilo. Digam a verdade: não estamos aptos para lê-los.
– Por Mário Lucas Carbonera