Por Mário Lucas Carbonera
Todos os dias ao despertar – por mais que o sono tenha sido revolto ou, pelo contrário, daqueles tão profundos que levam a um despertar meio entorpecido – pelo menos uma coisa temos no fundo d’alma, apesar da confusão ou do torpor, algo a que nos agarrar: sabemos que somos nós mesmos que acabamos de despertar. Chame-se vaga sensação, convicção sem palavras, ou como se quiser; o senso de identidade, de sermos ainda os mesmos que fomos dormir na noite anterior – e, mais ainda, de sermos os mesmos que temos sido por toda a vida, esse senso de identidade não se esvai após o esquecimento advindo do descanso noturno.
Esquecimento?
Sim, pois é experiência corrente dos homens que o sono faz com que nos esqueçamos de muitos detalhes do dia anterior, e muitas noites de sono vão apagando cada vez mais detalhes, de modo que, ao fim, o passado mais longínquo vai se tornando um imenso borrão na memória, ou como que uma maçaroca de fios. Sim, é claro, se pararmos para lembrar, cenas diversas e momentos surgirão daquele abismo que é a memória; e talvez por isso esse ato receba o nome de evocação, pois chamamos para fora as lembranças, e as que vêm em geral são aquelas imbuídas de um teor emotivo, que nos marcaram. Se ficarmos tempo o bastante nessa atividade, nos lembraremos até de coisas nem tão marcantes assim, pelo simples processo de associação: as coisas mais marcantes trazem consigo outras menos, que estão ligadas às primeiras por algum motivo associativo, não raro acidental ou até absurdo.
Mas, bem. Façamos uma pausa, pois o leitor já deve estar a se questionar por que este texto, cujos começos foram abruptos, está sendo escrito. De fato, não se deve escrever a esmo, somente por escrever, ao menos não quando se pretende publicar o escrito. Falemos pois agora um pouco sobre por que estamos tratando da memória.
O Instituto Hugo de São Vítor tem lá os seus anos no ramo da educação. E, com todo esse tempo, pudemos observar e bem algumas perguntas recorrentes da parte de alunos e seguidores, que são fruto das dificuldades mais prementes e constantes que surgem no estudo. Uma dessas perguntas é a que diz respeito à memória; mais precisamente, a como reter nela as coisas que se estudam. E são múltiplas as razões por que não conseguimos memorizar, tantas que nem poderíamos abarcar todas neste texto. Por exemplo, influem questões disciplinares. Pois o aluno que estuda de modo anárquico reterá pouquíssimo do que escuta e lê. Também aquele cuja alma é uma sopa de paixões borbulhantes não terá a estabilidade interior capaz de reter o abstrato, por só andar pensando em coisas ligadas à terra.
Mas não é esta a matéria nossa. Queremos falar da memória ela mesma, enquanto faculdade d’alma. Não nos restringiremos às definições lógico-formais, porém; mas seguiremos a meditação sobre o tema, que tem em conta a experiência imediata, do dia a dia. O que leva-nos de volta ao começo.
Chegamos a uma conclusão baseada no ato de dormir e acordar: que existe um senso de identidade, ainda que latente, ainda que não necessariamente pensado, nem sequer muito bem conscientizado, que permanece conosco do momento em que acordamos e por todo o dia. Não é preciso muito argumentar que nos convença de que esse senso é essencial e até vital a nós: sem ele, nos diminuiríamos a menos que boa parte dos animais (pois estes têm um pouco dele também, ao menos os que têm memória): seríamos como plantas, algo que tem vida, mas não está ciente de si. Ora bem, podemos então ir um passo adiante e dizer que esse a identidade é ao mesmo tempo o pressuposto da memória e aquilo pelo qual a memória já se justificaria. Santo Agostinho dá a entender isso num passo famoso; diz ele que se excluímos tudo aquilo que recebemos de fora e que está em nossa memória, ainda ali encontramos o senso de identidade. Então, aqui temos um chão. Excluamos, hipoteticamente, tudo mais que sabemos: a memória ainda se justifica.
Mas bem, é fato que não nos reduzimos e nem nos podemos reduzir a isso. Nossa identidade, no que tem de complexo, está ligada e presa a muita coisa que vem do mundo exterior.
Voltamos ao nosso experimento meditativo. De manhã, após retomarmos como que à posse da nossa identidade e das nossas capacidades humanas, a vontade e a razão, de imediato se nos ocorrem outras memórias. Estão elas ligadas em geral a preocupações e afazeres prementes do dia. Lembramos que temos de nos levantar para trabalhar, por exemplo. Mas, também, lembramos de onde estamos. Lembramos das pessoas que nos rodeiam, que moram na mesma casa, que estão próximas e com as quais já vamos interagir.
Tudo isso constitui a complexidade da nossa identidade, para além daquela nota básica de que somos quem somos e quem temos sido desde que, um belo dia, como um raio, nos ocorreu que temos capacidade de nos conscientizar. Então, somos o que somos, mas também as nossas relações com familiares, amigos, vizinhos, colegas, com o meio ambiente, o país, o estado, a cidade, o bairro, o clima, o tempo, os costumes, as leis e por aí vai. Essas coisas, na alma, todas se misturam, se juntam e formam uma tintura que colore as nossas disposições inatas.
Mas o leitor notará que ainda nada vimos sobre os estudos. É porque necessitamos de uma condição especial para que a memória bem opere neles. Se, por exemplo, temos de sair de casa para trabalhar, nossa memória está empenhada, ao menos em parte, em lembrar do caminho e dos afazeres que nos aguardam.
Em outras palavras, para bem empregar a memória nos estudos, precisamos idealmente de tempo dedicado e espaço silencioso; eis o ambiente propício para a meditação. E a meditação sobre o que foi lido é uma das bases da memorização. A leitura que, uma vez terminada, não é meditada, é como uma agitação na água que logo se desfaz e parece nem ter acontecido. Como famosamente disse Aristóteles, a memória tem de ser como uma cera quente que recebe impressões de fora e assume as suas formas. A mera agitação dela é tempo perdido.
Por vezes, porém, temos que imprimir várias vezes a forma na cera para que de fato fique lá impressa. Isso é normal, natural. Por isso a releitura é eficiente. Com ela, obrigamos até mesmo uma memória revoltosa a absorver aquilo que queremos, como quem treina um cão a seguir as ordens pela repetição contínua das orientações.
Ademais, a memória grava aquilo que nos comove, nos toca num nível pessoal; por isso a meditação com que iniciamos este texto nos mostrou que lembramos de várias coisas, seja pelo hábito de vê-las com frequência, seja por nos terem tocado profundamente. Também lembramos com mais facilidade aquilo que fazemos em companhia de outras pessoas, de preferência àquilo que fazemos sozinho, apenas na nossa cabeça. Por isso, estudar em grupo, compartilhando nossas impressões, é muito salutar para a memória. Pegar o hábito de conversar sobre os assuntos de estudo é, logo, coisa boa. Externar os pensamentos é uma forma de fixá-los, pois o embate dos nossos pensamentos com o dos outros como que lhes dá vida, e aquilo que está fora é mais notável do que o que está apenas dentro, logo mais memorável quando as coisas discutidas voltam para nós.
Entretanto, nem sempre isso é possível. Por vezes não há ninguém por perto para conversar sobre determinado assunto no nível em que o estamos investigando; mais ainda, só conversar não basta. É necessário trabalhar no interior. Em algum momento, temos de entrar em nós mesmos, fazer introspecção. Uma vez ali, precisamos moldar, de algum modo, aquilo que estudamos. Isso implica em transformá-lo em uma imagem, algo visível ao olho da mente. Daí surge toda a parafernália mnemotécnica chamada de Palácio da Memória.
Sem nos aprofundarmos hoje no tópico, é sugerível que se comece, como exercício inicial desse tipo de técnica, a tomar posse da própria imaginação, não deixando-a em um estado de fluxo natural, mas criando dentro dela um espaço onde podemos transitar, nos movimentar. Que seja um terreno amplo, um prado, um planalto; que erijamos ali uma construção, seja uma casa, um templo, uma Igreja; que, nesse edifício, móveis, pinturas, estátuas sejam postos. E aqui o aspecto crucial. Moldemos imagens que tragam em si analogias com conceitos abstratos que lemos ou ouvimos. Por óbvio, isso requer prática e engenhosidade. Procedamos aos poucos, nos exercitando, melhorando, adquirindo o hábito de manipular a imaginação e de guardar na memória as imagens que moldamos. Feito isso, teremos dado um passo de gigante.
Mas pararemos, neste texto, nesse passo. De mais a mais, o leitor interessado pode buscar mais material para trabalhar por conta. Agora, recapitularemos o que vimos, pois talvez alguma coisa se tenha perdido no andar da carruagem discursiva.
Começamos com a meditação sobre o ato de acordar. Isso foi feito para que nos déssemos conta das coisas que mais naturalmente nos vêm à memória: são aquelas que nos rodeiam, que vemos com frequência, e os eventos que nos marcam no nível emocional, sentimental. Mas outra coisa havia lá guardada, uma como que pérola escondida, à qual pouco damos atenção, talvez, mas que sempre reluz, ainda que não lhe voltemos o olhar mental. É a nossa identidade, a consciência de sermos sempre a mesma pessoa e não outra, que caminha conosco ao longo da vida, mesmo que não lhe prestemos a atenção. É o fundamento sobre que o homem pisa, base da personalidade e do conhecimento. Esse tema merece uma meditação própria, então também o deixaremos por ora.
Ficou, então, que a memória daquilo que estudamos, por não pertencer ao gênero de coisas mais imediatas a nós, necessita da ajuda de técnicas para que seja bem fixada. Recomendamos, para isso, que sejam discutidas as coisas estudadas e que se trabalhe a imaginação delas.
Com isso encerramos esta meditação, com a esperança de que o leitor por ela tenha enxergado os vários níveis da alma que ela pôs à luz, do mais profundo e essencial, até o mais elevado e abstrato, passando por aquele plano intermediário, em que estão as coisas que nos rodeiam e nos são familiares, a qual nutrem e compõe a personalidade na esfera afetiva principalmente. Se enxergou isso, terá tido uma boa visão dessa área tão importante da alma do homem, a memória, e com sorte poderá com isso estudar e aprender melhor as coisas que o interessam.