Por Mário Lucas Carbonera
Adensam-se as trevas, o mundo parece que vai em direção à noite mais perpétua. O frio avança, também, com as gélidas rajadas que cortam na carne os animais que nascem nus. Todo ser dotado de sensibilidade procura ou gostaria de poder procurar um abrigo com mantimentos e a salvo das intempéries. À noite, quando a sombra é mais profunda, os bandidos estão ainda mais alertas, prontos a assaltar incautos e desavisados; os próprios tiranos têm medo e são mais temerários em suas arbitrariedades.
Que o leitor imagine essa cena para tentar transpor-se ao lugar daquela família – santa como nenhuma outra – que vagava de casa em casa em busca de pouso para que o filho – o santo que muitos santos e sábios quiseram ver e não viram – pudesse nascer.
Cá no Brasil, no hemisfério Sul, a cena é um tanto diferente – isto é, contrária. Aqui nos encaminhamos para o dia mais longo, para a maior claridade e o maior calor do ano. Por isso a nossa visão do Natal do Senhor é um tanto complicada, por mais que copiemos e importemos muitas coisas da cultura natalina anglo-saxã, com seus papais-noéis encapotados, redomas nevosas, pinheirinhos, viscos e que tais. Enquanto enfeitamos a casa com tais apetrechos, sonhamos com uma praia apinhada, cerveja trincando e churrascada de bermuda ao Sol. Nada de mal em lotar a casa com símbolos natalinos do hemisfério norte, para que eles nos tragam para mais perto da realidade imaginal do nascimento do Salvador. E isso implica todas aquelas ideias acessórias – tão bem sintetizadas na figura do Papai-Noel – de dar e receber presentes, de se juntar em família, de confraternizar.
No entanto, já virou até lugar-comum fazer notar que esses acessórios podem acabar por nublar a visão da verdade natalina. E isso por uma razão óbvia. Juntamo-nos no Natal, em família, por causa do nascimento desassistido – entre animais irracionais – do Salvador do Mundo, e não o contrário. Quando uma coisa depende de outra, é natural que a dependente se ponha a serviço daquilo de que depende. A meditação pessoal de Natal, pois, deve preceder às próprias festas e confraternizações, aos pinheirinhos e presentes. Sim, a meditação solitária sobre o Natal, pois não é o bastante tão-só assistirmos à missa da véspera ou do dia 25.
Deve andar sempre em nossa mente a imagem da família itinerante de Belém (nome que quer dizer “casa do pão”, pois ali viria ao mundo o Pão da Vida). Nome antiguíssimo, registrado no Velho Testamento, por se tratar da cidade natal do Rei David, também era uma profecia que o Novo veio a nos aclarar. O Rei dos reis também quis ali nascer, embora no Seu nascimento o lugarejo nos dê a impressão de ser um paradouro transitório de uma família em movimento, em fuga. É difícil a vinda ao mundo para Aquele que o criou! Tão logo Ele surge, pomo-nos a afugentá-lo!
E assim é todos os dias das nossas vidas. Ao acordar, com sorte fazemos nossas orações – se sobrar um tempo! – saímos de casa e já tendemos a esquecer do Deus que quis nascer para tomar sobre Si os nossos pecados. Temos coisas a fazer, afinal de contas! De certo ponto de vista, é natural, necessário, ainda que um tanto para se lamentar. E é por isso que os monges retiram-se do mundo: para nunca terem de tirar da mente a realidade divina e seus mistérios.
Se pudéssemos rastrear cada pensamento por que nos deixamos levar cada dia de nossas vidas, poderíamos ver claramente quando nos esquecemos de Deus e por que causa; teríamos assim mais clareza em nossas ações, poderíamos retomar o fio da meada de onde deixamos o pensamento em Deus tratar com os homens e o mundo. Mas em geral não é assim que acontece. Quando acabamos de rezar ou meditar, e nos voltamos para o mundo, este tende a absorver de tal forma a nossa alma, isto é, os sentidos, o desejo, o sentimento, a ira, a vontade, a inteligência, que Deus tende a sumir completamente da nossa perspectiva, só retornando a ela como que por acidente.
Assim, de certa forma, afugentamos a Deus, e nos deixamos carregar para a obscuridade mundana, onde tudo é incerto por estarmos longe da única coisa necessária. Por alguma estranha e obscura razão, parece que preferimos estar nessa penumbra a andarmos para perto da luz – talvez porque tal proximidade nos relembre da necessidade dolorosa da purificação. Em todo caso, à medida que passam os dias, podemos nos tornar tão acostumados ao escuro, que nos tornamos um com ele. E tudo isso é muito estranho e perturbador.
Só que, então, quando as trevas são mais densas, de novo vem chegando o Natal.
Este é um período instituído pela Igreja para que nós, os distraídos do mundo, recomecemos mais ou menos de onde paramos a meditar sobre Deus e a buscar, com toda a humildade, nos conformar a Ele. E isso é o mínimo. Comecemos pois do começo de novo e de novo. E o começo é a origem.
Se não conhecemos com nossos olhos – e bem pouco com nossa inteligência – os começos da Criação, conhecemos algo mais valioso que isso por uma narrativa que é tão verdadeira e corroborada quanto tem um sabor mitológico e simbólico. Conhecemos o nascimento do eterno Criador do mundo. A nossa vida de fé também teve aí o seu início, naquele bebê na manjedoura, para o qual apontava a luz da estrela de Belém.
Naquela noite abençoada, em torno do Seu rústico berço os anjos cantavam melodias que, de tão belas, eram inaudíveis a ouvidos meramente humanos; ali estavam bestas, mas também a Sagrada Família. São José, o justo pai adotivo, e Maria, a Virgem Santíssima, a mãe de sangue, do mesmíssimo sangue vertido na Cruz. Olhemos um pouco mais de perto essa família.
São José está fora da caverna, à distância, vigiando um tanto tristonhamente; a Virgem Santíssima está de joelhos, contemplando com alma puríssima a maravilha das maravilhas – que uma mulher tenha gerado o Criador de todas as coisas. Mas e se pensássemos de outra forma? E se Maria fosse como a nossa alma, isto é, nossos desejos, sentimentos, e, em suma, tudo aquilo que é mais passivo em nós; e se José fosse como o nosso Eu, isto é, um misto de razão e vontade, aquilo que é mais ativo em nós? E Cristo, quem seria? Cristo é Cristo, o verdadeiro esposo da alma. Aí então teríamos uma bela alegoria do que se passa em nosso interior, sem que isso queira dizer que a história seja mera alegoria. O que ela pode nos ensinar? O que faz São José? Ele protege a mãe e o filho. Jamais ele tenta usurpar prerrogativas. Ele sabe, como diz São João Batista, que importa que Ele cresça e eu diminua. Não por acaso, quando Cristo surge para a vida pública, São José já não é mais mencionado e presumimos que tenha falecido. Analogamente, nós, os nossos eus, aquilo que consideramos mais de perto o nosso próprio ser, têm essa serventia: cuidar da nossa alma e do Cristo que quer nascer, crescer e ser esposo dela. Se formos fortes, perseverantes, se rezarmos e dermos graças sempre – como deveríamos – seguindo os mandamentos e preceitos do Cristo, então é certo que poderemos dizer com São Paulo Apóstolo: já não sou mais eu quem vive, mas Cristo. É claro que, nesta terra, essa é a prerrogativa dos poucos felizes, os santos. Mas deve ela ser nossa meta mais elevada e última.
Assim, o Natal nos torna claro vez após vez que nossos grandes bens interiores, inteligência e vontade, e tudo que fazemos com eles, nossos estudos, nossas orações, nossas boas ações, nossos sacrifícios, tudo tem uma grande motivação e serventia: cuidar daquela Virgem puríssima e daquele bebê na manjedoura, o mais santo dos seres que já vieram a este mundo. Assim, em meio às trevas que se adensam, aos frios que se aproximam, só podemos dizer mais uma vez, e cheios de entusiasmada intenção,
Feliz Natal a todos!