Por Mário Lucas Carbonera
Numa passagem bastante conhecida das Instituições Oratórias, Quintiliano afirma que a gramática é uma arte útil aos homens em todas as fases da vida. É um elogio bem eloquente, vindo de um retórico. Mais ainda se levarmos em conta certa rivalidade que sempre houve entre as artes. Mencionamos essa rivalidade no primeiro volume da Coleção 7 Artes Liberais. O próprio Quintiliano reclama que alguns gramáticos usurpam certos estudos que, em verdade, caberiam aos retóricos. E tais tipos de discussão estão espalhados por vários livros da antiguidade. O gramático Élio Donato, em sua Ars Maior, diz claramente que existem figuras de linguagem que pertencem aos gramáticos e outras que pertencem aos retóricos. Mas não deixa de citar nesse próprio livro algumas figuras, ou tropos, que, pode-se argumentar, pertencem à retórica.
No entanto, apesar de criticar os gramáticos, Quintiliano exalta a gramática. Por quê?
Segundo ele, trata-se do único gênero de estudos que tem mais substância que aparências a oferecer. A substância vem a ser o longo estudo que nos torna íntimos da própria língua com que nos comunicamos dia sim, outro também. E nos comunicamos não só com o próximo — e, hoje em dia, com o distante — como também com nós mesmos.
Para tanto, nosso autor diz que devemos conhecer com muita propriedade os sons da língua, as mudanças por que passam, as flexões, as incorporações morfológicas, etc. Também a importantíssima e hoje muito negligenciada questão das partes do discurso, onde afinal aprendemos como se elabora uma frase de maneira bem ajustada, sabendo de que peças se compõe e como encaixá-las direito.
Não descuidava ele, como hoje se descuida, de que o menor e mais simples viesse antes do maior e mais complexo. Por isso afirmava que o aluno deveria, antes de tudo, saber bem declinar os nomes e conjugar os verbos, sem o que jamais conseguiria passar ao próximo estágio dos estudos.
Quase nem se deveria falar sobre a noção de estilo; palavra hoje não mais usada, ou, quando usada, de forma etérea e divagadora, sem substância. As qualidades que o autor elenca — quais sejam, correção, clareza e ornamentação — são discutidas minuciosamente e com preceitos, não devaneios.
Tudo isso, lembrando, são palavras de um retórico com relação à gramática (e os mais atentos terão notado, decerto, a intromissão de uma arte noutra aqui de novo). Que imaginemos, por consequência, o esmero dos estudos de gramática sob a tutela de um mestre da arte da época.
Mas, afinal, por que Quintiliano considerava esta uma arte para a vida toda? Tentemos desvendar esta questão — ou, se não, ao menos formar uma opinião.
A retórica e a dialética são artes que visam à produção: de um discurso persuasivo, no caso da retórica; de um embate de teses contrárias que idealmente levará ao encontro da verdade, no caso da dialética. A gramática, dizem os manuais, serve para que escrevamos, leiamos e falemos com correção. Parece, também, ser produtiva — e é. No entanto, seu modo de proceder é muitas vezes interior e, pode-se dizer, mais virtual. Por quê? Porque geralmente os erros de gramática estão dentro de nós, tendo sido adquiridos do ambiente externo, tanto no primeiro aprendizado, como ao longo de toda a vida. Assim sendo, nós que buscamos a correção gramatical estamos em luta interior constante com os erros, ou por estarem profundamente enraizados, ou por sermos acossados de fora por eles.
Há mais um motivo, no entanto, que só pode ser elucidado se lançamos mão de um mito. No início, falamos sobre a língua ser utilizada não só para o diálogo externo, mas também interno. E esse diálogo interno que temos com nós mesmos é análogo com as descrições mitológicas que se fazem da criação do mundo. Nesses relatos, sempre existe no início uma confusão de todos os elementos, chamada Caos. Nas palavras de Ovídio, em tradução de Bocage: “massa indigesta, rude”. Indigesta significa o que não foi separado, como a massa de comida no estômago em que ainda não se separou o que é nutriente do que é escória. Rude se diz das coisas que não foram cultivadas. Algo similar se dá em nossa alma. No começo, tudo é confuso; mas, aos poucos, ao longo de uma vida, vamos separando o conhecimento da experiência, e os classificando, e os entendendo. E assim, se formos felizes, nos conheceremos. Para isso, porém, é necessário dominar uma língua, pois são elas alguns dos instrumentos mais aptos para a tarefa. Do contrário, a coisa torna-se muito complicada. E, se a língua, mesmo que não atrofiada, estiver mal desenvolvida, pode ser ainda pior.
Adotemos, pois, para nós este conceito de Quintiliano, e tratemos de cultivar ao longo da vida, sempre com mais dedicação, a arte da linguagem.