Quem tenha um pouquinho de intimidade com a República, de Platão, sabe da famosa passagem em que Sócrates propõe a adulteração e extirpação de certos versos de Homero.
Alguns se escandalizam. Outros propõem lançar Platão no balaio dos filósofos autoritários pelo crime de lesa-poesia, e deixá-lo aristotelicamente lá. Outros, aparentemente mais sensatos, veem ali um duelo de titãs, e preferem a meditação à condenação.
Em se tratando do mestre da Academia, sempre nos é preferível a posição de alunos que a de críticos. E, se assim é, devemos tentar entender ao invés de julgar a tão controversa passagem.
Um raciocínio lhe está subjacente. Mas, para desenterrá-lo, é preciso leitura atenciosa, pois os antigos escritores não facilitavam demais as coisas, a fim de induzir o pensamento reflexivo, e reprimir o meramente automatizado. A premissa do raciocínio é a seguinte: na educação, precisamos das palavras corretas, para incitarmos aos pensamentos e sentimentos corretos.
Certo. O que mais?
Bem, entendamos melhor o que são palavras corretas. A raiz das palavras que usamos está na realidade. E a realidade se compõe de várias camadas, cada uma com valor diverso. Mais ainda, as palavras têm peso, e seu peso deriva da sua antiguidade e de a quem estão ligadas. Assim, para exemplificar, se falamos do riso, como menciona Platão, e dizemos que os deuses não somente riem, mas dão gargalhadas homéricas – com o perdão do trocadilho – por causa da deficiência de outro deus, o que isso nos ensina?
Ensina-nos que não há nada de mal em nos entregarmos às gargalhadas, volta e meia ou sempre, por motivos fúteis. Pois é óbvio: se os deuses, que são altíssimos na escala cósmica (e para os gregos, os mais elevados) fazem algo, esse algo não só é lícito aos homens, mas recomendado, desde que não se esteja falando de alguma atividade reservada apenas à corte celestial.
Agora vemos por que é importante saber a quem determinada palavra é aplicada na fala corrente e pelos poetas. Do mesmo modo, quando um grego lia sobre as escapadas adulterinas de Zeus, como poderia deixar de sentir-se compelido, ao menos um pouco, a imitá-lo?
Há gravidade aqui. É claro que para nós, que surgimos no mundo após dois milênios de cristianismo, as histórias sobre Zeus têm um sabor muito mais cômico do que qualquer outro. E é bom que assim seja. Em todo caso, convém estarmos precavidos, ao sermos leitores de suas aventuras, para não cairmos na esparrela de querer imitar-lhe os atos.
Logo após, na escala das coisas, vêm os heróis. E, de novo, Platão encrenca com certas ações atribuídas a eles por Homero. Pois, não são eles para os homens o padrão de medida em relação à virtude da coragem? Não é pois conveniente que sejam descritos como gente birrenta, que rola na areia da praia, às lágrimas, por ter sofrido uma injúria. Ou, pelo menos, compreende-se por que alguém deve incumbir-se de apontar o descabido que há nisso.
E, de novo, nossa posição na história nos faculta algum distanciamento em relação às narrativas em questão; distanciamento que para o leitor contemporâneo de Platão, era nulo. Mais uma vez, pois, a reclamação do filosofo parece ser ao menos razoável.
Acrescente-se a isso o fato de que, no Sec. V antes de Cristo, a separação entre os discursos poético e filosófico ainda não era de todo clara; havia, em outras palavras, luta por primazia, pois tudo isso antecede a nossa mais sutil capacidade de discernir os diversos níveis de discurso.
Mas, bem, não presumamos encerrar uma discussão que dura 2500 anos, e que dá mostras de continuar ainda por longo tempo. O que resta claro é que as palavras ganham peso ao serem atribuídas a determinados personagens. E essa constatação nos basta.
Assim sendo, fica posto que na educação é preciso se atentar a esse aspecto, para que as palavras sejam capazes de edificar. Passamos ao largo da questão do estado de saúde delas na cultura atual, pois se trata de assunto muito mais inquietante. Com essas informações, façamos o que nos é possível para reerguê-las à sua significação mais própria.
E, tendo isso em conta, Platão ainda sugere outra medida para o problema das palavras. Ela tem tudo a ver com aquela que é a função primeira e principal do discurso humano: dar nome às coisas. Pois então não nos basta usar as palavras no contexto certo, aplicadas aos personagens certos – ou que pelo menos tenhamos noção de que estão empregadas de um modo não tão excelente. É necessário também penetrar-lhes o sentido profundo.
À guisa de exemplo, tome-se uma palavra que empregamos com certa frequência: entusiasmo. Nós a usamos como sinônimo de “estar empolgado”. O problema é que, na sua origem, essa palavra têm o significado técnico de “estar tomado por um deus”. Sua região semântica primitiva é a da religião, e ela faz referência a um estado sobrenatural de exaltação no homem.
Quando ela passa a significar apenas o estado genérico de excitação, há, portanto, decidida perda semântica; e cada uma dessas perdas é causa de empobrecimento lexical e, por consequência, pensamental.
Perde muito a língua pelo rebaixamento do específico a mero sinônimo genérico. Daí o perigo de se ver uma gama de palavras de carga semântica analogável como intercambiáveis; daí o perigo dos dicionários. Ou, mais exatamente, de se querer aprender a língua pelo apelo exclusivo a eles. Atualmente, um apetrecho tardio e de segunda mão foi elevado em ferramenta principal, o que em épocas fortes seria inimaginável.
A via correta e única para se desenvolver a verve da língua é, e sempre será, a grande literatura. Pois é nesta, pelo uso rico e abundante dos poetas e prosadores de boa cepa, que as palavras são postas nos seus devidos lugares; ali são feitas finas distinções, associações inesperadas e sugestivas, com abundância de significado. O contrário disso, é língua dos dicionários, a língua da sinonímia, do igualitarismo rasteiro e depauperado, que tudo rebaixa à língua de pau.
Com a língua enguiçada, não alcançamos falar das coisas mais interessantes: a saber, não somente deste mundo, mas dos outros. Do céu e do inferno. Dito de outro modo, se o entusiasmo é mera empolgação, a dimensão celeste perdeu um pouco de sua realidade.
E aqui voltamos a Platão para encerrar. Ainda a reclamar, ele faz uma investida contra o modo como os poetas falavam do Hades, das paragens infernais. Mas Platão não sabia que vivia nos tempos áureos. Hoje já não há, quase, linguagem para falar da existência do inferno, menos ainda dos seus detalhes. Qualquer mundo para além deste – e, mesmo neste, para além de seus aspectos mais exteriores –, está se dissipando de modo acelerado da mente dos homens; tudo tem-se tornado – coincidência ou não – mais e mais esfumaçado, tudo perde os contornos. E o chão se abre para a voragem.
Utilizar-se das palavras com maior grau de correção é de grave importância. Se vamos prosseguir nessa missão, devemos atentar-nos aos aspectos assinalados pelo velho e sábio Platão. Mais do que criticar Homero, como sugere uma análise boboca, seu anseio era ensinar as bases onde se ergue a sã linguagem humana. As palavras importam. E nos cabe tratar delas com responsabilidade e reverência, se quisermos tirá-las do lodaçal em que os maus tratos as lançaram.