No universo da Cultura, houve já muitas questões que se apresentaram para serem resolvidas. Vem à mente a questão dos Universais, na Idade Média, e a dos Antigos e Modernos, na Renascença, para só citarmos duas que correram séculos e produziram muito pensamento interessante e rico. Nos dias atuais, no Brasil, surgiu uma nova questão – nem de longe tão interessante quanto às antigas – mas que tem dado pano para manga. Sabemos dela porque temos recebido quase todos os dias perguntas sobre a melhor tradução de determinado livro. Uma vez que repetir as mesmas respostas é atividade cansativa, para além de pouco eficiente, neste artigo traremos de modo mais esmiuçado nossa posição sobre o assunto e apontaremos os mais seguros e proveitosos caminhos.
Vamos direto ao âmago da questão: o que diferencia de fato uma tradução de outra e quais critérios podem ser usados na escolha da melhor tradução?
Há pelo menos dois critérios máximos que dizem respeito ao texto em si:
1) a precisão da linguagem, isto é, quão exatamente o tradutor é capaz de verter para a nova língua as palavras do original; por exemplo, “door” do inglês para “porta” no português, e não “portão”. Este quesito é mais matemático e quantitativamente reduzível, embora, é claro, não completamente, pois diversas palavras ou expressões – geralmente às que dizem respeito às experiências emocionais (a saudade é portuguesa, dizia Fernando Pessoa) e à visão de mundo de um povo – nunca são plenamente traduzíveis, salvo por meio de perífrases e outras ferramentas de linguagem que podem tornar a tradução pesada e, no caso da poesia, criar embaraços em relação à métrica e ao estilo;
2) O próprio estilo, isto é, quão efetivamente o tradutor é capaz de emular aquelas qualidades tão idiossincráticas de cada autor, como o ritmo do texto, o modo direto ou indireto de dizer, o emprego das referências e de expressões idiomáticas e todas as demais coisas que mui bem caem naquele dito francês, je ne sais quoi. É fato que o estilo do autor é ainda mais difícil de traduzir; e não faltaram pessoas que o dissessem intraduzível, sem exagerar muito a verdade.
Esses curtos apontamentos por si só já mostram de modo cabal a dificuldade hercúlea da tarefa; e não disse mal aquele que disse, traduttore traditore; bem como aqueles que dizem que é mais prático aprender a língua do original que compreender um texto por meio de traduções.
Mesmo assim, há quem insista em lê-las; e com motivos plausíveis para tanto; não lhes tiramos a razão, porque nós mesmos o fazemos. Algo, no entanto, nos deve estar bem claro e indelével na mente ao optarmos por traduções, que vale especialmente para a literatura de ficção: Toda leitura de tradução é necessariamente incompleta, mutilada, manca. Isso é fato. Se entendemos disso, podemos lê-las sossegadamente.
É um bom momento para um exemplo; contanto que saibamos que é apenas uma ilustração que não ilumina, nem de longe, toda a questão. Uma das obras sobre que mais nos perguntam é a Divina Comédia, de Dante, e não sem razão. Trata-se de uma obra estilisticamente obscura em diversos pontos, e isso de modo proposital, não por erro ou acidente. Dante está, afinal, falando de coisas que, literalmente, nenhum olho humano viu e voltou para contar: Inferno, Purgatório e Paraíso. Somente uma mente humana de prodigiosa capacidade poderia lidar com esses temas sem incorrer nas obviedades, mesmo nas teológicas; sendo assim, não devemos culpá-lo pelo estilo obscuro, mas louvá-lo pelo quase miraculoso que retrata e revela.
Vamos analisar o poema à luz de duas traduções para o português: a de Vasco Graça Moura e a de José Pedro Xavier Pinheiro. A primeira parece buscar a emulação do estilo do original; a segunda busca traduzir Dante num modo mais tipicamente português de dizer, modo até camoniano. A primeira é, pois, mais obscura; a segunda, mais inteligível e palatável no geral. Qual é a melhor? Do ponto de vista da tradução, em nossa visão, nenhuma. Ambas nos ajudam porque a de Graça Moura é incapaz de imitar à perfeição, apesar dos esforços titânicos. O que Graça Moura deixa escuro, Xavier Pinheiro busca iluminar; e aquilo que neste é tão luminoso que ofusca o original, Graça Moura traz a uma luz mais controlada e adaptada ao olho humano. De certa forma, elas se completam e é ótimo que assim seja.
Vejamos o primeiro terceto do primeiro canto:
No original está:
Nel mezzo del cammin di nostra vita
Mi ritrovai per una selva oscura
Ché la diritta via era smaritta.
Em Vasco Graça Moura:
No meio do caminho em nossa vida
Eu me encontrei por uma selva escura,
Porque a direita via era perdida.
E em Xavier Pinheiro:
Da nossa vida em meio da jornada
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estrada.
De cara vemos que em termos de sentido exato das palavras, nenhuma perda há em ambas as traduções. E esse em geral é o caso, talvez para surpresa de muitos; a não ser que sejamos severos como os filólogos, coisa que não convém a nenhum leitor iniciante nem sequer aos intermediários.
Por outro lado, uma análise rápida parece-nos indicar que a tradução de Vasco Graça Moura, para além de ser a mais fiel, neste caso é mais bela. Nota-se que, por razões de métrica, no primeiro verso ele teve de verter a preposição “di” do original em “em”, o que causa algum estranhamento, mas não repulsa. Xavier Pinheiro, por outro lado, faz diversas modificações, tais como inversões frasais, mudança de termos como “cammin” em “jornada”, “oscura” em “tenebrosa”, e “via” em “estrada”. Há alguma perda de beleza nesta primeira estrofe, mas não de significado. Podemos avançar nela com tranquilidade. E avançando notaremos que em muitos passos Xavier Pinheiro se mostrará mais belo que Graça Moura, e quase sempre mais translúcido e vernáculo.
Tudo isso a demonstrar que é necessário, caso declinemos da opção de aprender a língua original, ler todas ou pelo menos mais de uma tradução para termos a experiência plena de um clássico como a Divina Comédia. E isso não é pedir muito. Obras desse cariz querem de nós dedicação e leitura ao longo da vida. Não são obras, são companheiros na dura caminhada do homem sobre a Terra.
Ainda uma palavra sobre o rigor erudito dos filólogos. É que, a rigor, ninguém é erudito em todas os clássicos da literatura. Mas em uma, duas ou, no máximo, três. No resto, se é leitor como os outros, a saber, sempre com muito a aprender, devendo, por isso, sempre se mostrar disposta a aprender.
E nem mesmo um filólogo erudito em algum autor ou obra se pode gabar de ter aprendido tudo que um clássico dos clássicos tem a ensinar. A experiência dessas obras sempre tem sido a mesma: elas são como fontes puras e cristalinas que nutrem a alma inteira do homem. Assim como as fontes, elas dão água nova permanecendo as mesmas. Por isso sempre nos causam maravilha. Por isso, também, nenhuma tradução as pode verter por completo; a tradução como é uma nova fonte, mas derivada da original, que em razão disso não consegue senão verter uma parte bem limitada do fluxo, da pureza e do brilho que lhe confere ser e sentido.
P. S.: Se ainda assim você ficou em dúvida sobre como deve escolher uma tradução, vai uma dica de bônus. Dê preferência às feitas pelo Instituto Hugo de São Vítor. Por algum motivo, elas são as que mais atendem às nossas expectativas.