Imaginemos que encontramos, inesperadamente, um amigo e, sem preparar, ele nos lance a seguinte proposta: meu amigo, que achas escalarmos o monte Matterhorn? A resposta viria de bate-pronto: amigo, ou estás maluco, ou estás brincando. E, se estás brincando, a piada não é das melhores.
Por quê?
Afora que o mencionado monte fica na Suíça, que não pratico montanhismo, que não pretendo pôr em risco a vida, que sou trabalhador brasileiro – afora tudo isso, a pergunta veio de inopinado, destituída de qualquer fundamento.
Por outro lado, se o amigo me convidasse para uma pacata pescaria nas redondezas, a resposta seria muito mais simples, mero sim ou não dado de acordo com a agenda da semana e minha disposição de ânimo.
Nesse pequeno exercício de imaginar vemos toda a diferença que há entre um convite para uma atividade cotidiana e um convite para uma atividade extraordinária, que requer tempo, planejamento e assunção de riscos. Ressalvadas as devidas diferenças, é a distinção que há entre entrar para o mundo da cultura e entrar para o mundo da alta cultura. Distinção que com a vitória avassaladora da cultura de massas tem-se perdido mais e mais, soterrada sob os pés da turba violenta e sedenta por diversão rápida e entorpecente, numa ação entrópica da qual não se vê o fim num futuro breve.
Todos que nascemos em um país mais ou menos organizado entramos, sem fazer força, na sua vida cultural – ou antes no seu caldo cultural. Se não fôssemos imersos nele, não seríamos humanos, mas meninos-lobos. Trata-se pois de um batismo humano – e demasiado humano. Mas um batismo necessário. O grande perigo é ficarmos no caldo como o sapo da fábula, sendo cozinhados vivos aos poucos, sem nem notar. Isso ocorreria se pensássemos que essa cultura passiva em que somos imersos é toda a cultura, que nada há para além do que as famílias, as escolas e a mídia nos passam com o rótulo sagrado de cultura. Pois há.
Não, a alta cultura não é algo diverso da cultura como o fogo é diverso do hipopótamo. Está mais para os recintos superiores de um mesmo edifício em que nos andares inferiores se fazem as coisas indispensáveis para a preservação material da vida, como as refeições e a higiene básica. Que se faz nos andares superiores, pois?
Nos andares superiores se continua fazendo coisas humanas, só que coisas mais perfeitamente humanas. Há um pão humano (que, como veremos adiante, admite gradações de qualidade), mas há também o pão dos anjos de que nos fala Dante no começo do seu Convivio e na Divina Comédia, seguindo na esteira de toda uma tradição que vem dos Padres da Igreja. Esse pão pode ser interpretado de diversas formas segundo a mesma tradição, mas uma das interpretações é a de que se trata da contemplação.
Bem, façamos uma pausa aqui para esmiuçar os dois tipos de alimento que vamos identificar com a cultura e com a alta cultura. A cultura geral, então, nos dá o alimento diário, cuja função precípua é nos lembrar, todos os dias, de que somos homens, somos humanos, e não bichos. Ao menos essa seria a sua função especial, particular. Porém, na feitura desse pão entram muitas variáveis, e nela se nota quase que ilimitada gradação de qualidade. Essa cultura se compõe portanto aquilo que se chama de folclore, de lendas, de obras populares de todos os tipos; mas também uma nova modalidade dela há, atualmente, chamada de “cultura pop”, cujo nome mais apropriado, segundo o Prof. Olavo de Carvalho, seria cultura industrial.
Trata-se de um monstro multiforme que beira o indefinível, mas cuja função no mundo parece ser dar ao público o que o público anda querendo: diversão fácil – alienação de si e do mundo circundante. Não é dizer que toda a diversão é má; parece que o homem precisa, sim, de algum momento de esquecimento de si por causa da estafa de todos os dias. Mas essa diversão precisa ser regulada pela mais sã e justa razão, se quiser se justificar perante o tribunal divino e até mesmo perante o tribunal humano, mais utilitarista. Do contrário, a zumbificação (para usar um símbolo caro a essa cultura) do homem, que é vista às escâncaras, seguirá e só aumentará. Pois o zumbi é um monstro feito de alienação que busca alimentar-se do seu próximo e devorar-lhe a vida. Mas esse é assunto para outro momento.
Se a função da cultura é nos lembrar de quem somos e, juntamente, nos lembrar de que pertencemos a certo povo, com certos costumes e certa língua, deve-se concluir que o crescimento exponencial de produtos culturais massificados opera na direção contrária a essa. Nesse enquadramento, a cultura pop, quanto mais enlatada e estúpida, mais nos leva para longe da finalidade; e mais nos tornamos atomizados, habitando mundos apartes do dos nossos conterrâneos. Daí que se forme a cultura das tribos. E que são tribos senão uma pletora de grupos incomunicáveis e hostis entre si dentro de um mesmo país? Se alguém quisesse, nessa situação, pôr em prática a divisa de dividir para conquistar, teria um caminho muito, muito fácil…
Contudo não é só essa a resultante péssima de uma cultura industrial anabolizada; pois quanto mais mirrada é a cultura popular genuína, cujas raízes estão bem fincadas no solo histórico de um povo, menos se vê a possibilidade de ascender à alta cultura. Sem o andar inferior bem assentado, não se constrói um segundo piso. Sem se saber fazer bem o pão diário, nem sequer se pode sonhar com um dia comer – pelo menos nesta terra – do pão dos anjos.
Bem, agora podemos retomar o que vínhamos dizendo sobre a contemplação ser o fim último da alta cultura, se nos permitir a pouca força que temos. Não vamos, porém, nos furtar de tentar.
Ora bem, temos, todo santo dia, de nos lembrar que somos homens. O esquecimento é uma força que sobre nós opera sem que nada possamos fazer. E é por isso que todo dia temos que escutar uma boa música, ver o noticiário, conversar sobre a vida, beber um bom café, assistir a um filme ou série, contemplar a paisagem, rezar, ir à missa; idealmente, devíamos também ler algumas linhas de prosa e de poesia e, vez ou outra, ir a uma galeria de belas artes, frequentar um sarau, uma palestra e coisas do tipo. Isso são coisas salutares não para um ou dois tipos específicos, mas para todos os homens. Fazer essas coisas é ter cultura, cultivar-se, ser homem. Não fazê-las é entregar-se ao fluxo corrosivo do esquecimento e se ir tornando bicho aos poucos. Não há outro remédio: é fazer isso ou perder-se.
Mas isso tudo é comer o pão diário, terreno. Como dissemos, há outra espécie de pão, que é celestial, e cuja aquisição é muito mais dificultosa, incerta, pois requer planejamento e disposição a assumir certos riscos pouco conhecidos. A alta cultura não é uma forma de vida geral, mas especial, à qual alguns são chamados, mas muitos não são. São os famosos happy few de que fala Shakespeare, convocados para a batalha grande e incruenta contra o inimigo superior. Seriam, então, eleitos, guias iluminados da humanidade? Longe disso. A maior parte dos convocados, antes, cai pelo caminho; mas, se não tiverem perdido a honra, fugido à luta, isso não lhes redunda em perda, mas em ganho ainda assim.
Para chegar à tal contemplação, meta última do intelecto humano, nos dizem todos aqueles que trilharam esse caminho, é preciso muito estudo, muita meditação e dedicação e, além disso, é necessário despir-se de todas as tantas más inclinações que nos vieram pelo pecado de Adão. É verdadeiro trabalho de Hércules, verdadeira jornada de volta à Ítaca.
Mas deixemos de falar por meio de alegoria. A via da alta cultura não pede, pois, um contato mais ou menos casual com as obras que compõem a produção cultural humana, nem aceita que se restrinja o contato às obras produzidas na língua materna do estudante: requer abertura e aprofundamento muito maiores, isto é, uma disposição a ir em busca de tudo que de nobre e elevado o homem disse e de buscar a raiz dessas coisas, raiz que está na experiência, e não em meras noções e ideias abstratas, mecanicamente repetíveis.
A alta cultura, pois, pede que não apenas saibamos da existência da Ilíada; nem só que conheçamos por alto os seus episódios mais célebres; nem só que a tenhamos lido uma vez e passado para o próximo; nem só que saibamos quem é quem, quem fez o quê; nem só quem ela inspirou e em que sentido: ela pede tudo isso, sim, mas mais, pois tudo isso é ainda erudição oca, se não nos entrar pelos poros e pelas veias, e em nós se tornar carne, músculos, tendões, ossos, articulações, e, até, semente de vida. Se a cultura não se tornar em nós carne viva e produtora de vida, ainda será pouco, será mera lembrança de que somos homens; mas queremos, aqui, ser mais do que mera lembrança – queremos ser homens, sem precisar nos lembrar, que isso nos seja entranhado como as vísceras e o coração. Só assim praticaremos aquele ver que é mais do que ver, que é contemplação, pois vê aquilo que os olhos não podem. Mas isso é para poucos, muito poucos felizes. A nós, se nos tocou seguir por esse caminho, e que vivemos no entanto num ambiente hostil, dominado por aquele dragão feio e multiforme da cultura enlatada para imbecilizar – a nós, se estamos nesse caminho da alta cultura, que nos contentemos em cair tombados, mas levando adiante a bandeira e a passando para os nossos pósteros. Que eles tenham sina mais feliz que a nossa.
Aos mais, entretanto, que nos leem mas não se sentem atraídos por essa via difícil e até para muitos invisível, não pensem que estão desobrigados perante a cultura geral. Sim, estão desobrigados de entrar, inopinadamente, na vida da alta cultura, se receberam um convite arbitrário (coisa que muito ocorre hoje em dia) para ela. Mas da cultura geral, jamais. Pois é óbvio que devemos ser a melhor versão de nós mesmos que pudermos: isso é obrigação. E ninguém chega a isso desprezando a cultura (em sentido amplo), dizendo que ela não é para si, que é coisa de eruditos e estudiosos. A cultura genuína, verdadeira, além do mais, é como um rio que se forma pela chuva que cai dos céus da alta cultura; portanto, em alguma medida, todos estão obrigados a travar conhecimento com ela, saber da sua existência, venerá-la e cuidar para que seu fluxo não cesse, nem que seja ajudando com meios materiais. Isso tudo é o mínimo. Que hoje em dia pareça muito, excessivo, árduo é apenas um testemunho de que ainda estamos indo para o lado errado, e de que precisamos urgentemente de uma correção de rumo.