Por Mário Lucas Carbonera
Com a multiplicação das vozes disseminadoras de conteúdo na Internet, já se tornou notável certa perplexidade nas pessoas dispostas a consumir (como se diz) as ideias em circulação. É uma reação natural, de se esperar até. É um fenômeno conhecido o embarras du choix. E é o que estamos vendo ganhar força neste, por assim dizer, mercado das ideias.
Por dilatado que esteja o mercado da educação, sabe-se que em grande medida ele é composto por gente nova, recém aportada. Portanto, trata-se de pessoas que carecem, antes de tudo, dos rudimentos da vida do conhecimento. Assim sendo, a toda essa gente, do jeito que está, o mercado em si não poderá deixar de parecer um verdadeiro labirinto.
Por um lado, labirintos fascinam o ser humano. Não à toa, já que tendemos a nos comprazer com enigmas que desafiem a inteligência, nossa mais nobre faculdade. Porém, que o próprio jogo de oferta e demanda se torne um obstáculo àquele que sentiu em si, sem saber ainda direito donde vinda, a comichão do conhecimento – isto é coisa que logo se torna um elemento alienante, em vez de ser aquilo que deveria, um elemento encorajador. Numa palavra, o produtor de conteúdo deveria guiar, não trabalhar ele próprio na construção do labirinto.
Não estamos aqui argumentando em prol da fuga voluntária de agentes desse mercado. Não somos tão pretensiosos. E a questão que este texto quer abordar não é essa. A situação atual veio aqui meramente à guisa de pretexto e, até certo ponto, de alerta. É que esse problema não é novo, e é bom saber disso justamente no momento em que estamos.
A confusão provocada pela circulação de ideias – sejam elas conflitantes entre si, sejam concordantes, mas expostas com roupagem verbal diferente – é um problema, e um problema que em todos os tempos foi observado. Na Grécia do período clássico, havia a escola dos sofistas, a dos filósofos naturais e as dos filósofos socráticos competindo por alunos, e isso simplificando muito a coisa. Hoje em dia, a situação complicou-se já mil vezes. Sendo assim, é óbvio que estamos diante de um problema sem solução de amplo escopo, pois ele surge da constituição mesma do homem. Mas nem por isso é algo que pode ser ignorado e posto de lado como questão marginal; algumas considerações a respeito dela podem e devem ser feitas para se lançar uma luz aos que adentraram de boa vontade o labirinto das ideias.
Para começarmos de modo positivo, esse é um problema melhor do que o da total ausência de ideias em circulação, que por muito tempo foi o caso brasileiro. Ninguém o negará. Não obstante, a questão continua a atormentar. Ainda na imagem inicial do labirinto, é questão de recebermos um bom guiamento, que conduza à meta: uma vida de estudos sã e proveitosa. Num cenário idílico, o guia é um professor de carne e osso que já cursou com sucesso o labirinto e chegou ao fim idealizado. Ele esteve lá e voltou. Nem sempre se encontra facilmente essa avis rara. Ou, antes, quase nunca e, quando encontrada, muitas vezes não se consegue ter o necessário contato com ela que faculte um aprendizado compensador.
Aos muitos infelizes que não tiveram tal sorte é necessário que partam para a segunda opção. Trata-se daquela que hoje em dia denomina-se “consumir conteúdo”. Tecnicamente falando, conteúdo é uma coisa morta. Na melhor das hipóteses, é conhecimento morto, que necessita reencarnar. Se o ato de consumir é coisa análoga ao ato de comer, tal tipo de conhecimento haverá de passar por um longo e laborioso processo de preparação, mastigação e digestão antes de ser assimilado. Mas, se consumir alimento é um processo praticamente natural para o homem, consumir conhecimento não é coisa tão simples.
Para melhor entendermos isso, voltemos ao símile inicial. Logo na entrada de um labirinto costuma haver uma bifurcação. Fazer a curva errada resulta em perder-se, pois após muita perambulação se chega a um beco sem saída. No caso da educação, qual seria a primeira bifurcação que se encontra pelo caminho? Trata-se do seguinte dilema: devemos ou não gastar alguns anos para adquirir a formação de base antes de fazermos a jornada pelo labirinto das ideias? Não é o caso de se fazer uma crítica ferrenha ao atual sistema de ensino; ele é o que é. Ademais, algumas pessoas, por mérito próprio e com uma ajudinha da Fortuna, mesmo nesse sistema conseguem preparar-se para uma vida de estudos séria. Por outro lado, uma verdadeira multidão acaba saindo dele muito mal preparada, às vezes com a inteligência totalmente mutilada.
Sendo esse o cenário, um fenômeno deveras curioso desenrola-se a nossa frente. Trata-se do incrível caso dos estudantes que reclamam por se sentirem despreparados, mas que, ao mesmo tempo, se lançam com avidez no consumo de ideias e concepções as mais escabrosamente complexas, somente porque elas calharam de lhes aparecer no caminho. Mas esse é o caminho que leva ao beco sem saída. Cedo ou tarde isso ficará evidente. Então, terão de voltar atrás ou desistir da empreitada de uma vez (o que pode ser até mais perigoso). A estes dizemos: deem meia volta, caso o caminho serpentino esteja parecendo cada vez mais confuso e obscuro. Há uma outra estrada.
Outros, entretanto, escolhem a primeira via. São aqueles que anteveem que a jornada não é um passeio qualquer e decidem preparar-se para a caminhada árdua que leva, segundo o parecer unânime dos sábios, à vida feliz. Porque começaram como se deve, lendo a poesia e os mitos da humanidade (“farol que ilumina todas as culturas”, nas palavras do nosso Junito de Souza Brandão) – eles sabem que no centro desse labirinto, vencido o intrincado dos corredores claustrofóbicos, encontra-se, ainda por cima, um Minotauro. Sobre este, em geral os disseminadores de conteúdo nada dizem (ou dizem coisas desencontradas). Provavelmente porque fizeram a curva errada lá atrás ou, talvez, porque tenham sucumbido ao monstro – um resultado que, é claro, não admira: ele é extremamente perigoso.
Não nos basta, entretanto, vencer nossas mais baixas aspirações e o desordenado das nossas vidas para chegarmos ao centro do Ser; uma vez lá, temos de retornar à vida do dia a dia. A isso o mito também alude. Teseu, o herói grego que unificou a cidade de Atenas, o fez por meio da sutil artimanha de Ariadne, levando consigo um fio que marcava o caminho percorrido. Não temos o direito, assim, de entrar de mãos vazias no labirinto. Temos de saber guardar na memória o caminho percorrido para podermos ir e voltar pelas ideias que nos levam ao centro do Ser e de volta ao mundo, como o peregrino que escapou da caverna de Platão. Uma imaginação e uma memória purificadas e ordenadas estão, pois, na lista de necessidades.
Todas essas coisas nos são fornecidas, em grande medida, por uma sólida educação de base. Não será, portanto, nos lançando ex abrupto numa patuscada filosófica regada a leituras multifacetadas que atingiremos essa base do nosso ser. No máximo, viveremos bêbados de ideias malucas.
É a educação de base que nos fornece o mapa e as ferramentas para superarmos os desafios do labirinto das ideias. Para o leitor bem atento, as ideias, nessa perspectiva, são ao mesmo tempo a solução e o problema. Precisamos, pois, aprender a tratar delas como se aprende a tratar duma dama, com suas suscetibilidades (as leitoras que nos perdoem, mas neste caso não sabemos se a recíproca é verdadeira; sabemos apenas que as artes, a filosofia e a própria teologia sempre foram retratadas como mulheres). Caso contrário, corremos o perigo de sermos enredados. Mas, se soubermos nos guiar pelos perigosos fios de ideias sem irmos parar longe da meta, o resultado será para lá de satisfatório. De novo, é isso que nos dizem os sábios – e também os bem casados.
Já o dissemos e continuaremos a repeti-lo: a educação de base (nome que pode soar feio, mas que oculta coisas belas) é, precipuamente, as Artes Liberais. Bem longe de ser mero ferramental, para alguns ultrapassado, para outros alvo de fetiche, a finalidade hoje oculta das Artes era, como dizia o próprio Sócrates, treinar o olho da mente para a visão da verdade – ou da realidade. Não é qualquer coisa mais ou menos acidental, como falar com correção, ser persuasivo ou fazer contas de cabeça; mas algo que resultava disso tudo. Uma metanoia, se quisermos buscar um termo ao Evangelho; por óbvio, não aquela de que fala Nosso Senhor, mas, não obstante, algo que também requer mudança de vida. Por isso tantos filósofos de cenho carregado disseram que a filosofia, se não impactasse profundamente na alma do estudante, era coisa inútil, sem serventia. Isso vale também para as servas da Filosofia, as Artes Liberais.
Assim, para aqueles que já chegaram naquele ponto do labirinto em que se sentem irremediavelmente perdidos, repetimos: há uma escolha a se fazer. Pode-se voltar atrás, para as bases da coisa, e aprender do começo, passo a passo, degrau a degrau. Ou pode-se seguir em diante, tateando às cegas. Mas, é nosso parecer, disso virá uma de duas coisas: ou se chegará a um beco sem saída; ou se deparará um Minotauro, faminto e sem piedade.
Muito bom! Já tive de voltar ao começo algumas vezes, mas agora terei calma. Estou começando praticamente do zero os estudos das artes. Incrível esse artigo!